sexta-feira, 15 de maio de 2009

A marca da maldade

Grilhões do passado e A marca da maldade constituem o ápice do barroco wellesiano. O barroco, de que Borges deu uma definição breve e radical ( “eu chamaria barroca a etapa final de toda arte, quando ela exibe e dilapida seus meios”), convém maravilhosamente a Welles para a descrição de um mundo deteriorado, apodrecido, no limiar do estágio último de sua decomposição, neste fim de segundo milênio. Aliás, nenhuma das histórias contadas nestes filmes poderia se passar senão no século 20, em um universo terrivelmente velho aos olhos de Welles, que sempre tentou criar e encarnar personagens à imagem e à medida deste universo. Nesta empresa, sua juventude o incomodou bastante, e eis uma das razões de seu gosto pelas maquiagens e postiços, de que sempre usou e abusou. Se os que usa em Arkadin são quase tão catastróficos quanto os de Cidadão Kane, em A marca da maldade ele nos dá uma cativante composição de um destroço inchado e à deriva que nos faz completamente esquecer que o ator à época tinha apenas quarenta e dois anos. Tecnicamente, os estilos de Arkadin e Marca da maldade podem parecer opostos: montagem curta, chuva de planos criando um ritmo esbaforido e rico em surpresas em um, planos sequência cuja duração infla até se esvair em outro. No entanto, estes dois estilos chegam a um resultado idêntico, o de delinear o retrato e o balanço de um mundo em agonia,, cujos últimos sobressaltos são fixados com paixão pelo autor.

Aliás, Welles explicou que recorria aos planos curtos quando tinha pouco dinheiro, e aos longos, aos planos seqüências, quando tinha um pouco mais. É preciso ficar bem entendido, no entanto, que Welles utiliza o plano sequência numa ótica oposta a de um Preminger, que através do plano quer fazer esquecer o découpage e a montagem, neste sonho idealmente clássico de um filme que seria composto de um único plano. O plano sequência de Welles se designa e se reivindica como tal em cada um de seus segundos. É uma proeza, destinada a tirar o fôlego do espectador e a engendrar um suspense interno que concerne menos à ação propriamente dita que ao virtuosismo do diretor. No primeiro plano de Marca da maldade- trajeto do carro com a bomba( sem dúvida o mais espantoso e significativo de toda a carreira de Welles)-, estes dois suspenses coexistem e coincidem absolutamente. Quanto ao resto, ou seja, a fotografia violenta e contrastada ( Welles é o cineasta para quem o uso da cor é essencialmente alheio) o uso das curtas focais e dos enquadramentos insólitos ( plongées e contra-plongées), os dois filmes são idênticos e recriam este espaço crepuscular, percorrido por fantasmas expeditos , espaço este que o cinéfilo mais debutante reconhece como inegavelmente wellesiano.

Os dois filmes, no plano do roteiro, são de um nível muito inferior, mas este é um estímulo para que Welles se interesse mais pelos personagens que pela ação, e ainda mais pela atmosfera que pelos personagens. Os temas da corrupção e do poder, da memória inalterável e mortificante, da impossível mudança de identidade ( sublinhada por esta profusão de máscaras e de lugares diferentes onde os personagens buscam de forma vã se ocultar) ressurgem perpetuamente entre as linhas e as imagens. O roteiro de Arkadin é ligeiramente superior ao de A marca da maldade, pois toma sua construção de empréstimo de certos filmes noirs, cujo precursor foi Cidadão Kane, e também por não conter nenhum maniqueísmo. Todos os personagens “estão no mesmo barco”, e participam da universal corrupção do mundo. Já o roteiro de Marca da maldade é o mais cheio de convenções, complacências e inverossimilhanças que já se viu num policial depois da guerra. Pouco importa, pois permitiu a Welles encenar, uma última vez, em todo seu esplendor minado “ de dentro”, o seu teatro de sombras e pesadelos.

Nota: Sem dúvida, é abusivo colocar Welles entre os grandes artistas deste primeiro século de cinema. O tempo fará justiça a este erro, cometido ao lado de outros por histórias do cinema que ainda tem muito a explorar em uma arte tão difícil ainda de julgar, em vistas de sua novidade. Seria também injusto negar a Welles as qualidades que lhe pertencem: as qualidades de um grande “pequeno mestre”, que soube persuadir seus contemporâneos de que tinha gênio, as qualidades de um príncipe do artifício , ou de um brilhante megalômano cuja megalomania tornou conhecido e superestimado para além de toda medida e que foi, ao mesmo tempo, privado de realizar a obra abundante e constante, secreta e definitiva, que outros em Hollywood pacientemente construíram no ingrato conforto da obscuridade. Mas este não seria o destino e a última pirueta de certos barrocos? Inspirar-nos o lamento, através da dilapidação de seus dons, pelas obras sublimes que poderiam ter nos proporcionado?
Jacques Lourcelles
Tradução: Luiz Soares Júnior

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