sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Edward mãos de tesoura, Tim Burton

Em se tratando de um filme ainda recente, visto através do prisma da atualidade galopante, a primeira revisão, em vídeo cassete ou na televisão, se mostra uma experiência implacável 1. Do filme vemos apenas o esqueleto e alguns traços mais salientes. A aura desaparece, em proveito de um olhar mais espectral e analítico. O vídeo afina a lógica e o sentido do rigor; antes de tudo, ele nos fornece informações. A questão logo se torna crucial: o filme resistirá? Ou antes, pelo contrário, vai "desinflar", como um balão informe? Eu lhes asseguro: Edward mãos de tesoura é o melhor Tim Burton feito até hoje, e permanece um objeto absolutamente único, que resiste perfeitamente quando visto numa tela restrita.
O que seduz particularmente aqui é a irrupção do gótico na América doméstica e contemporânea. Ao invés de se contradizer ou se anularem, estas duas características opostas se reforçam mutuamente. O filme se apresenta, portanto, ao mesmo tempo como um ensaio meio pictórico, meio social sobre os subúrbios pequeno-burgueses; e como um conto fantástico e mitológico que nos remete diretamente à série dos filmes sobre Frankeinstein e aos filmes da Hammer, pelo intermédio de Vincent Price. De fato, o subúrbio toma, à primeira vista, o caráter de um espaço mítico e encantado, repintado com as cores de Tim Burton, rosa, violeta, laranja, algo entre John Waters, Tashlin e Tati. Aliás, sob sua aparência de conto filosófico que põe em cena um personagem tradicional de homem-máquina, o filme também é um estudo fino e preciso, quase documentário se quiserem, da vida americana. É assim que Burton radiografa certos traços americanos, como a tendência à intolerância, ao matriarcado, circulação de fofocas...
Mas há também em Edward uma característica precisosa, e mesmo rara: a infância. Não quero dizer que o filme de Tim Burton se dirige antes de tudo ao público infantil, mas simplesmente que ele toca diretamente nesta parte da infância reencontrada que, por exemplo, um escritor como Nerval exprime com uma extrema sutileza. Adoro em Edward mãos de tesoura as esculturas de arbustos, as sessões no cabelereiro, as refeições na casa com a deliciosa Dianne West...Mas adoro ainda mais a última parte do filme, quando ele deságua na história de amor louco ( amour fou) e de conto de fadas de pesadelo. É graças ao personagem de Kim, interpretado por Winonna Ryder ( seu melhor papel) que Edward ( aliás, Johnny Depp) adquire toda a sua grandeza. Assim, todas as sequências que encenam as "mãos de tesoura" tem ao mesmo tempo algo de perturbador e fascinante. Dois momentos dentre os mais belos do filme: Edward "barbeando" literalmente os muros com este ruído de "guincho" que irrita os nervos ou estilhaça a alma; ou ainda estes momentos onde os dedos ferem sem querer a criança ou a mulher amada. Edward mãos de tesoura, portanto, acaba, graças ao casal impossível formado por Kim e Edward e ao sentimento insólito e inelutável que se insinua entre eles, por ser tomado uma "febre" digna de Nicholas Ray, sobretudo na sequência final, quando os vizinhos, transformados em justiceiros- com a exceção de um gentil policial-, perseguem o monstro humano, demasiado humano. Até então nos acreditávamos dentro da Noiva de Frankenstein, e somos subitamente projetados ao final de They live by night ou de Juventude transviada. É este deslizamento absolutamente inesperado que dá em definitivo o valor do filme.


Thierry Jousse


Tradução: Luiz Soares Júnior.
1. Este texto foi retirado de uma edição da Cahiers de 1993, onde a equipe analisa os filmes em relação à sua transmissão em vídeo e, portanto, todas as implicações em matéria de linguagem desta transposição de mídias.

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