terça-feira, 19 de julho de 2016

A moça com a valise, por Louis Skorecki




Quando a palavra “Fim” se inscreve na tela, o que nos dizemos ( por menos sentimental que se seja)? dizemos: “Isso acabou mal, e eu amaria que tivesse acabado bem- mas no entanto eu sabia desde o começo que não poderia ter acabado de outra forma”. Zurlini- seu cinema- se apóia quase que inteiramente nesta reflexão e em suas conseqüências. Quando o fim ( de uma história, de um filme) não é propriamente inelutável, podemos sempre, como último recurso de sentimentalismo, colocar o desenlace entre parênteses,imputá-lo a um artifício de roteirista, ou mesmo sonhar, passando por cima do metteur en scène, um outro fim possível. Quando este fim está inscrito na própria história, naquilo que se dá desde o começo, não temos mais nenhum recurso à nossa disposição: só nos resta desesperar. Os belos filmes de Zurlini ( dentre os quais este se inclui) se empenham quase que exclusivamente em descrever, em negro e rosa, a imperceptível passagem do rosa ao negro: aqui, só se encena a dissolução das bochechas róseas, tudo está de antemão perdido, o  sentimental e o viscoso da adolescência se esmaecerão irremediavelmente sob a goma do tempo, só ganhamos da vida em derrisão e em “conforme às normas”: tudo acaba.

Assim com A moça com a valise: ele é rico mas jovem, ela é jovem mas pobre; ele a ama mas não sabe, ela não o ama porque sabe; quando ele sabe, não a ama mais, quando ela o ama, não sabe mais nada; ele é jovem e depois aprende, ela já viveu e depois esqueceu; tudo recomeça para ela até a decadência, tudo acaba para ele em um instante; ela permaneceu uma criança apesar das dificuldades, ele se torna um adulto apesar do conforto; tudo os separa, e no entanto tudo os reúne, no espaço de um segundo, na dimensão intemporal do despertar, antes que tudo se arruíne em uma conivência desencantada: “ eu sei que tu sabes”. Variações infinitas sobre o tema da passagem e a tese do contraste. Imobilismo regulamentar da fotonovela naquilo que possui de mais convencional. Convencional até lhe esposar totalmente o arbitrário e o traçado, a moral e o perfume. E, no entanto, existe bem e belamente subversão na operação de Zurlini, alguma coisa que faz derrapar a convenção, desregrar o propósito. O que?

Para começar, é mais fácil ver aquilo que não é: não são as liberdades tomadas para com os clichês ( ele é inocente mas logo se torna perverso, sacado; ela está longe de ser pura, e no entanto preservou dentro de si uma parte de pudor, uma parte de abertura para o sonho), tanto é verdade que neste domínio as liberdades e as variações se tornam em pouco tempo- é a lei do gênero- clichês tão fortes quanto aqueles de que queriam se descartar. Não se trata também da coloração um pouco mais política do que de costume ( ele pertence à juventude dourada, ela à juventude pobre e suja; ele possui a lei, a moral e a religião de seu lado; ela não tem nada do seu), pois também aí o fundo da fotonovela já está balizado, - não podemos fazer coisa melhor- por tais oposições, e das mais explícitas: o empregado e o patrão, o rico e o pobre, o fiel e o infiel, o crente e o ímpio, a ordem das coisas e sua impossível transgressão, a legitimidade e a revolta, o sonho e a realidade, etc. Não se trata muito menos do pessimismo da situação e o trágico de seu desenlace: atrás dos fins água de rosa dos folhetins mais sentimentais mascaram-se dificilmente as angústias mais intransponíveis, as separações e os antagonismos de classe mais definitivos, uma inverossimilhança radical de natureza mais desesperada e desesperante que o desespero confessado, justamente porque informulada. Então, o que derrapa e desregra em Zurlini?

Avancemos uma hipótese: nada. Ao colar à pele das convenções e de seus personagens como o faz, Zurlini compõe um mundo irreal que desnatura a platitude do original, que de certa maneira o media: é um pouco como se, ao estatismo da fotonovela, acrescentasse uma dimensão suplementar- a do élan sentimental que lhe empresta o leitor. Ele é assim o organizador e o organizado de uma ficção de ficção: engaja-se no corpo de seus personagens para cometer o delito supremo ( e o corpo de delito não é outro senão o filme), que consiste em fazer crer naquilo que fazem, de vibrar ao mesmo tempo que eles no diapasão improvável de suas paixões. A fotonovela se anima e adquire vida: a lavadeira espera o ônibus, Mickey salta do trem para abraçar sua mãe, o jovem aristocrata desenlaça o corpete da lavadeira, uma bomba de efeito retardado explode no coração da jovem. Os mutantes estão entre nós.

Louis Skorecki, Cahiers du cinéma 298, março de 1979

Tradução: Luiz Soares Júnior




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