segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Serge Daney sobre L'enfant secret




     

Um homem deixa entender que sofreu. Um cineasta diz que ele testemunha por sua geração. Uma experiência luta para chegar à narrativa. Um conto ainda está brilhante de ter passado por tanto gelo. É um filme? Se sim, L’enfant secret assemelha-se bem àquilo que se passa hoje no cinema francês. “Sofrimento”, “testemunha”, “experiência”, “Narrativa”. Palavras maus vistas, maus ditas, envelhecidas e que fazem medo. Retomemos.

O homem sofreu, mas ele não se lamenta muito não ( é um dandy). Sua geração? Perdida, é claro, aliás como a nossa. A experiência? Banal de chorar. Um homem e uma homem com nomes bíblicos ( Elie e Jean-Baptiste), interpretados por dois atores bressonianos ( Anne Wiazemssky e Henri de Maublanc ), ou o encontro do eletrochoque e da overdose nos tetos de Paris. Entre eles , o segredo mal guardado de uma criança, Swann. Swann o cisne, signo de vida, de sobrevida a dois, criança de crianças. Swann é um pouco de película a tremular. E a narrativa? Como já não se fazem mais. Cada movimento talhado com jaspe ou acariciado com um seixo em mãos , com um começo e um fim, um antes e um depois. Retomemos, portanto.

O sofrimento é surdo, contido, nada orgulhoso. Ele não dispõe nem de muitas palavras nem de muitas imagens. Ele está lá, isto é tudo. Lá por onde devemos necessariamente passar. Em um gesto convulsivo, olhem Wiazemsky na cena final, olhem suas mãos; ou, em uma voz muito branca, escutem o homem falar de seu internamento psiquiátrico: a dor de se “juntar” entre duas ausências a si-mesmo. Ela está na feiúra dos quartos de hotel, em uma Paris friorenta, sobre um lenço ensangüentado, no sorriso de um que tarde a vir ou no rictus de outro que passa por um sorriso. Do sofrimento não há nada a dizer. É cada um por si e plano por plano. Para o espectador também( suponhamos aqui que o espectador também  havia sofrido).

O testemunho, podemos rir. À “geração perdida” podemos dizer: uma a mais! Recentemente, nos perguntávamos qual tio Godard nos contaria as mais belas histórias da geração que teve 2O anos em 68.( aquela de Garrel).

Era no momento de Morrer a vinte anos. Quem filmaria o militantismo, a droga, a mendicância, as trips e os flips? Quem o teria feito do interior? L’enfant secret não é Mãe e a puta, mas dez anos depois é do que mais se aproxima dela. Em Eustache, falava-se até vomitar, julgava-se a todo instante, morria-se de discurso , ou administrava-se uma zona de silêncio mortal no coração de uma língua colocada para fora dela mesma. Em Garrel, é semelhante, com a condição de ser inverso. Não se cala muito, todas as palavras são desajeitadas, ninguém sabe julgar, faz-se vagamente parte de um mundo onde todo mundo deve ser bom (há angelismo em Garrel, não é segredo para ninguém), mas em alguma parte ou lugar , e jamais ali onde ele está. No seio da afasia, Garrel maneja uma espécie de monólogos em branco. Olhem Elie e Jean-Bapthiste”se parler” em um único movimento de câmara que os segue, aéreo.
---Tu a mangé aujourd’hui?  ----Attends, laisse-moi te raconter le film...
Agora, a experiência. A experiência não é a comunicação fácil; é um péssimo condutor de “fenômenos de sociedade”, mas esta deixa traços . Seria preciso, pensa Garrel, que estes traços sejam os menos espetaculares possível. Porque o espetáculo é o outro pólo da experiência , o pólo vendedor. Teria tudo dado errado em França se tudo tivesse sido sacrificado ao espetáculo (ou mesmo, como em Boisset, sua denunciação hipócrita), porque o cinema francês, frágil em demasia no espetacular, é muito forte no experiencial, no existencial. É assim. Filmes irresumíveis , telas tomadas por “folhas arrancadas”a livros de bordo e diários íntimos, do negro e do branco e das vozes off, é isso o que rende o cinema francês único: Um chant d’amour, Pickpocket, Testamento de Orfeu, Le petit soldat, L’enfance nue, o Amour fou, todo Eustache, todo Garrel, e agora Enfant secret.
A narrativa, para acabar. Ali onde o filme toca na mais justa questão, o lugar deste balbucio severo à la Paulhan. Pois o filme conta ao mesmo tempo em que não quer morrer ou então porque já está morto ( esperemos pelo próximo Ruiz!) Contamos para nos curar. Dizer “antes” e “depois”, esta coisa que tanto intrigava a Musil, é um signo de vida. A filmografia de Garrel, às vezes, era como o deserto de Cicatriz interior, plano como um encefalograma, com remontadas ao céu sulpiciennes e de olhares de ícones-câmera. Neste sentido, L’enfant secret, tão vacilante pobre assim como é, é desconcertante.
E porque se trata aqui de questões de infância, eu pensava neste pequeno eslovaco do cinema moderno porque, em quartoze anos, havia aprendido uma coisa: que é preciso semear migalhas detrás de si, e que cada uma destas migalhas seja única. As “cenas” de Enfant secret são longos inserts, saynètes (esboços) ou, como Jean Douchet tem bem razão de dizer, são carícias. Às vezes áridas ( dir-se-ia então que se trata de cinema de amador), às vezes suntuosas (lembremo-nos agora que Garrel não ignora nada da beleza; que ele a mantém sentada, muito jovem, sobre seus joelhos).
É como se este filme autobiográfico tivesse conseguido não perder o Norte sem esquecer o traço de cada etapa. Ataques de experiência sensorial pura ( tocar, ter fome), atos em sua secura ( o eletrochoque), momentos serenos e furtivos. Gosto muito da cena onde Jean Bapthiste , realmente sob os hábitos de um mendigo, acende a bituca de cigarro que acabara de pegar sob o banco. Eu disse a mim mesmo que era como se fosse Griffith ou Charlot que viessem por alguns instantes. Que Garrel havia filmado esta coisa que jamais se viu: a cabeça dos atores dos filmes mudos nos momentos em que é  o noir do carton, com suas pobres palavras de luz, que ocupa a tela.
 18 de janeiro de 1983
 Tradução: Luiz Soares Júnior

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